<$BlogRSDUrl$>

quinta-feira, setembro 30, 2004

Correia de Morais
In “Crónicas da Costa do Sol” – 1965

Não existe qualquer disposição legal que impeça um homem de escrever quando está com o pifo. E pelo que me respeita, até o faço mais inspiradamente e com muito mais cultura. Ao natural, estou sempre com o raio da preocupação de saber tanta gramática como os locutores da TV, mas depois que bebo umas coisas, não dou confiança ao gerúndio e ataco no bem falante. E tenho cá para mim que nos dias de folga, o Fernão Lopes também se empielava e fazia estilo alcoólico. Bem comportado só o senhor doutor Júlio Dantas, mas ferraram com ele na Academia, e ainda não se descobriu melhor para um cidadão apodrecer mais depressa.
Neste negócio da escrevinhação, cada um toca o que sabe e só parece mal andar por aí a surripiar as interjeições do vizinho, ou a aleijar o bom estilo, misturando-lhe umas coisas, para disfarçar. Que sempre fui dos que não ligam nenhuma ao entre parêntesis e isto é desenganar: escritor gramático é escritor arrumado. Tal como os pielas, bêbado de conta certa é meio caminho andado para as águas do Vidago. Em última análise, a gramática é a cirrose da literatura. Um fulaninho contrai uma sintaxite, mastiga mal as esdrúxulas, atrapalha-se naquela confusão dos graves e agudos e daí a nada, até mesmo deitado, só faz é reticências. Está um homem liquidado e com um processo de divórcio.
...

terça-feira, setembro 28, 2004


Ora vejamos, e porque não, como me orientar então nesta tempestade prenúncio de meia idade.

Qual ternura dos quarenta, qual dengosa aptidão familiar. Qual carreira, qual carapuça. Qual lar montado, qual alegria das raízes. Não senhor, nada de suaves enganos nem de vida equilibrada.
Somente com um ou mais cartões de crédito douradíssimos e ilimitados seria feliz. Porche alugado e jacto fretado. Alma embalada, vida aviada e estar de abalada. Nórdica de oitocentos euros hoje, nipónica de mil dólares amanhã. Vida peregrina em hotéis de cinco estrelas. Ser cometa humano sem trajectória definida mas com James Martins a horas certas. Pequeno almoço em Roma, t-bone no Oklahoma. Brioches com champagne às cinco na Côte D’Azur. Jantar pato em Pequim para cear bokwursts em Berlim. Retiro espiritual no Hilton do Bali, seguido de conferência de imprensa acerca do sentido da vida no Four Seasons de Bangkok. Asceta em lençóis de seda e profeta de jacuzzi baptismal. Saltimbanco sem destino, vestido com Armanis comprados de véspera. Camisas descartáveis, cuecas idem, peúgas aspas aspas, sapatos ibidem. Andarilho de profissão inscrita no passaporte. Poeta niilista sem meta prevista e com garrafeira à vista. Prosa elaborada inscrita apenas com o suor na toalha abandonada junto à marmórea sanita. Sem-abrigo de saudade mas com room-service nostálgico. Esteta do efémero, estátua em movimento, criador de partidas, sonhador em viagem, forcado de destinos, atleta de distâncias. Polaroid literária com registos diários para entrega imediata a fortuitos e ocasionais leitores, sem ficar com negativos. Dando de caras com o amor, diria a essa mesma flor que sou só pólen e a mais não sou obrigado. E quando a morte chegasse, deixar-me de frases profundas ou visões imundas, e dando o número do visa na recepção, trataria da cremação.
Voltando ao lugar de partida, sinto que o que me impede de tal odisseia é a existência dos meus filhos, lindos e aprumados. No entanto, ao anular a partida, vejo que o que me impede de concretizar a ideia, ditado pela consciência, é a inexistência dos cartões dourados e ilimitados.



segunda-feira, setembro 27, 2004

E uma vez mais...
Perdoa-lhes Pai, que eles não sabem o que fazem!

Uma ova: Dá-lhes nos cornos Pai, que os sacanas sabem perfeitamente toda a merda que praticam.

domingo, setembro 26, 2004

Cântico Negro
José Régio

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

AXIOMA

Se nutro a mais honesta indiferença por qualquer um dos juízes que a qualquer momento te podem condenar, como ter então respeito pelo teu reles ser e temer os teus sórdidos actos?

quinta-feira, setembro 23, 2004

VARIAÇÕES SOBRE UM PIFO COM ILUMINAÇÃO ADJACENTE

Os homens existem para viver e morrer
Viver é um passatempo, morrer é o tempo que passa

A Verdade não é possível mas permanece
A História é um erro que se renova sempre

Os sonhos são o único perdão para a Humanidade
A Humanidade é uma massa de amor, sangue, lágrimas, nervos, ossos e tutano.
Nada é o que parece ser, tudo é consciência apenas

Os Deuses são a eternidade em fragmentos de fé,
a fé é um recheio da massa que falei,
a eternidade é somente uma pequena história,
uma história são palavras,
as palavras acabam-se sempre...

O silêncio perdura e a sabedoria alimenta-se deste,
o silêncio é a realidade em melancolia,
a realidade é o único impossível que existe,
a sabedoria é a única alegria que os homens desconhecem,
os homens não foram feitos para conhecerem muita coisa

A Natureza tem uma sabedoria chamada liberdade,
a felicidade nem sempre sabe disso,
os homens não conseguem chegar perto da liberdade
porque estão presos na massa de que falei lá atrás!

Há homens livres, eu nunca os vi!

A liberdade não se vê, voa-se ...
voar é real apenas para os pássaros,
os pássaros são canções,
a melodia é a distância que percorrem,
a música é feita com todas as distâncias
e enche o céu

O céu fica lá no alto, onde estão condensadas muitas coisas
como o passado, o presente, o futuro

Do alto às vezes chove...
A chuva é uma mão cheia de lágrimas do tempo
O tempo é um louco correndo para lado nenhum...

Nenhum é apenas uma palavra
Deus é outra palavra

terça-feira, setembro 21, 2004

Dos meus vícios destaque-se Vinicius...

O Desespero da Piedade


Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinicius de Moraes

segunda-feira, setembro 20, 2004

Desabafo do século passado feito no milénio anterior

REQUIEM LUSITANO

Sempre a mesma vertigem. Sempre o mesmo vómito. Insustentável, inevitável. Apesar de não se darem conta disso, não deixo de gostar de vós, ó paisagem humana a brincar ao poder e às coisas sérias! Mas já não me seduzem muito, por tudo o que causam e arrastam. Estamos finalmente saldados. E eu, esgotado até para o silêncio. A vossa inutilidade como fonte de inspiração, a minha inapetência como forma de impotência. Originalidade no ser humano? A vida de quem arrisca tudo todos os dias. E, pontificadamente, a morte de cada um! Em frente, marche!
Moral turva, ó Alberto De Tão Pouca Pimenta? Gostaria de te oferecer quota de dez por cento da minha alma e alguns hectares dos seus arredores.
Disseram-me um dia que não se pode querer nada. Mas querer nada é já ter tudo. Além disso, nasci umbilical até aos píncaros mais profundos da essência do que me constitui! Quis sempre, e apenas, bater palmas. Fosseis vós um grande espectáculo... Fosse a palhaçada politicamente correcta! Ah! tédio a ranger-me nos dentes, com raiva mastigada e salivada a paciência.
“Entre dos tierras estas”? Fraco! Ó heróes del silencio! Vá lá um gajo comprar música ibérica. Resistir, conho... Inventar muito e sempre, até à exaustão. Repetir a ladainha interna da sobrevivência para complementar a mecânica biológica. Não é isso acordar todos os dias? Descobrir propósitos, passear ideias, arrancar emoções do vazio, musicar os sonhos a preto e branco, ludibriar destinos e catapultar futuros. Amar à ganância e duma maneira egoísta. Esmifrar, com toda a vida possível, a “coisa suprema”, para que a morte não se ria de nós.
O que fazes longe da pátria Saramago? Dói-te o mesmo que doeu ao Jorge de Sena? Duvido. E porque raio não sabes para onde o mundo vai? Esclerose de visionário? E, já agora, o que é isso de encontrar o outro? Não há outro: só há Eu a pensar o outro! Deixamos de os pensar num instante e desaparecem no momento seguinte.
Quando era criança, tinha o terrível hábito de destruir tudo o que não gostava. Criteriosamente selectivo no entanto. Agora, na impossibilidade de ser Rei, gostaria de ser inimputável. Compreenda Sr. Dr. Juiz: duvido que alguma vez entendesse os meus motivos reais - simultaneamente de realidade e realeza, quando já tivesse perpetrado (adoro este palavrão) tudo aquilo que me ocorre fazer de impulso intuitivo, para repor a ordem pura, estética e límpida das coisas. A democracia é uma merda. Um justiceiro já não se pode divertir.
Ser um clandestino cultural no meu próprio país, incomodou-te, não foi, ó Vergílio Ferreira? Descansa em paz, que eu também não!
Estou saturado de tantos recados inconsequentes. Nunca fui adepto daquela treta do ditado: para bom entendedor... Porra! Táctica própria de quem não sabe discursar ou se refugia atrás da ausência de sujeito. Não senhor! Bojarda com pés e cabeça, tem de ser devidamente endereçada, e, se possível, enviada com aviso de recepção.
Lisboa foi linda no ano da graça do Senhor de 1994. Tivemos moscatel a rodos e foi um laréu rodopiante. Não concordas companheiro Lud? Já teria bastado toda a vida, só por essas refrescantes futilidades, como cocktails no deserto do tempo.
Ao que a Esquerda chegou em Portugal, com os seus épicos Manueis a fabricarem hinos para bola. Pois é, meus senhores, vós criais e clonais os carneiros e depois ficais indignados pelo uso e abuso que os capitalistas lhes dão. Seria mais coerente incitar à lobotomia alargada e colectiva. Todo este processo, depois da morte do comunismo, é um despautério social, possivelmente criado com sofisma.
E vocês, geração rasca-do-erro-ortográfico, tropeçando gramatical e matematicamente em bué de “naices” coisas novas. Tordos engasgados com coca-cola, regurgitando mac-donalds e vibrando com a mais reles taralhouquice que se inventa quotidianamente, com o intuito meramente comercial. Futurologia? Se criasse um hino à estupidez humana, uns sonetos à grunhice social e umas odes à pequenez desalmada, ainda seria moderno daqui a quinhentos anos. Mais vale criar um ultimatum a todas as gerações futuras, com o pseudónimo de Vetérrimo de Buéréré.
E para terminar; perguntam-me, o que quero eu? Eventualmente, que você, caro leitor, nem sequer existisse, para eu não ter o raio desta função – que também não sei bem qual seja. Adiante. E como não sou de rancores, mais ainda, sendo eu um fervoroso adepto da coexistência pacífica, tenho apenas a declarar: bem-hajam todos, sim, que todos merecem!

domingo, setembro 19, 2004

35 SONETS

I

Whether we write or speak or do but look
We are ever unapparent. What we are
Cannot be transfused into word or book.
Our soul from us is infinitely far.
However much we give our thoughts the will
To be our soul and gesture it abroad,
Our hearts are incommunicable still.
In what we show ourselves we are ignored.
The abyss from soul to soul cannot be bridged
By any skill of thought or trick of seeming.
Unto our very selves we are abridged
When we would utter to our thought our being.
We are our dreams of ourselves, souls by gleams,
And each to each other dreams of others' dreams.

Fernando Pessoa

CALLING LONDON

May the fog allow you to see the way to the airport of your soul
May the flight be slight and your wings dance with the wind
So my heart can be clean from this endless fog inside me
And by dispatch my deepest dreams become at last reality


sábado, setembro 18, 2004

LONDON CALLING

Sabina:

It is the night
Old and tender

It is the voice from your body
Like silk over me

E dando os trâmites por findos repondo o repositório...

FAZER NADA

Fazer nada, continua a ser a atitude mais revolucionária. Abençoados todos os que se dedicam à sua prática, com meios ou sem eles. Fazer nada sem destino, alcance ou outro subterfúgio. E amar continua a ser a única revolução possível. Fazer nada e amar andaram sempre lado a lado. É claro, ó ignorantes, que não estou a falar de ócio e engates. Do que eu estou a falar, é de ser imensamente mestre de silêncio pela vida adentro e monge da existência e da liberdade pelo Mundo fora. Hoje fala-se muito, sem dizer coisa alguma com trambelhos, e fornica-se, tudo ou todos, sem esbarrar de caras com o amor.
Depois do Pós-Moderno vem o quê? A Pré-Primária? Declaro iniciada a fase dos Neo-Autistas, como movimento de vanguarda, para toda a gente das áreas da criatividade. É óbvio que o despertar e o consolidar do talento serão, inevitavelmente e muito futuras, tarefas dolorosas, solitárias e de imenso arreganho. Mas vai valer a pena vociferar em qualquer frente, pois de trampa e mediocridade já estamos nós fartos. Os cordões umbilicais com o Mundo só resultam em influências nefastas, ou em comércios castrantes. A facilidade da informação, a jorrar por todos os canais e afluentes, destronou a conquista da sabedoria. Estamos anafados de tecnologia e embrutecidos de futilidades e artifícios. A felicidade compra-se cada vez mais, e a liberdade possível é como um preservativo espiritual, untado de vaselina de várias cores e sabores.
Há que romper com o engano de novas linguagens ao serviço do futuro, pois os conceitos que as pariram mantêm-se por demais antigos. Valerá sempre mais dizer coisas novas com palavras arcaicas, do que gaguejar baboseiras antigas adornadas com efeitos laser. Depois, há também que transmitir às novas gerações, contrariamente ao que se propagandeia nestes dias em que só há espaço para os vencedores, a noção exacta de que não existem, verdadeiramente, derrotas ou fracassos, mas simplesmente contrariedades, vicissitudes desagradáveis e caminhos que não foram concluídos da melhor maneira. Senão, arriscamo-nos a assistir a suicídios em massa. E reparai, ó senhores esclarecidos, que esses serão os nossos filhos e outros consequentes.
Aborrece-me, de tédio sem medida mensurável, a mania actual de cursar muito para ser-se apenas mais um cavalo, de corrida em qualquer terreno, ou de exibição equestre em gabinete de luxo. As carreiras, a especialização, o fazer cada vez melhor (fosse realmente isso!); está bem!, já sei, já sei! Ó aventesmas de perfil saudável, ginásio a horas certas e sexo higiénico: tudo o que importa vem de dentro. Cá fora, é apenas o imenso mar onde se tem, inevitavelmente, de navegar. Naufragar pode ser mais salutar que singrar com sentido, mesmo com rota prevista. E naufragar pode vir a ser, simplesmente, dar de caras com aquela ilha perdida, desde sempre sonhada.
É urgente prescindir da mania de crescer. É urgente amar mais, com sorrisos patéticos nos lábios. É urgente tornar este mundo habitável para todos os que o mereçam. É URGENTE COMEÇAR A FAZER NADA COM MÉTODO.

quarta-feira, setembro 15, 2004

Hoje, tardinha adentro, eu sentado imensamente solipso, enquanto degustava um gin crónico e ficava em transe enfrentando o vai-vem do mar, tendo como pano de fundo o desmaio do sol, lembrei-me do célebre diálogo, de que amigos já não me recordo, acerca do casamento: "Epá, o Rui vai casar..." - "Contra quem?"
Vem isto a propósito da onda avassaladora de divórcios, que inunda os acasalados lusitanos, a qual poderia ser seriamente evitada caso se lesse mais o Mário-Henrique Leiria, e se levassem a sério os profundíssimos ensinamentos aí intrinsecamente alojados.

NOIVADO

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de
ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.


E pronto, tive inevitavelmente de experimentar uma treta destas:

Which Tarot Card Are You?

...e o resultado está à vista, servindo-me como uma luva de pelica.

The Fool Card
You are the Fool card. The Fool fearlessly begins
the journey into the unknown. To do this, he
does not regard the world he knows as firm and
fixed. He has a seemingly reckless disregard
for obstacles. In the Ryder-Waite deck, he is
seen stepping off a cliff with his gaze on the
sky, and a rainbow is there to catch him. In
order to explore and expand, one must disregard
convention and conformity. Those in the throes
of convention look at the unconventional,
non-conformist personality and think What a
fool. They lack the point of view to understand
The Fool's actions. But The Fool has roots in
tradition as one who is closest to the spirit
world. In many tribal cultures, those born with
strange and unusual character traits were held
in awe. Shamans were people who could see
visions and go on journeys that we now label
hallucinations and schizophrenia. Those with
physical differences had experience and
knowledge that the average person could not
understand. The Fool is God. The number of the
card is zero, which when drawn is a perfect
circle. This circle represents both emptiness
and infinity. The Fool is not shackled by
mountains and valleys or by his physical body.
He does not accept the appearance of cliff and
air as being distinct or real. Image from: Mary
DeLave http://www.marydelave.com/


domingo, setembro 12, 2004

PORTAGENS NA VIA DO INFANTE

Carmona disse que não mexia mas Mexia põe-se a vascolejar. Tenham tino para não haver desatino - haja juízo, ó senhores do poder central!
Ainda há dias vim de Benalmadena, percorrendo quatrocentos e sessenta quilómetros de auto-estrada espanhola até à fronteira. Custo zero. Entrei depois na Via do Infante para percorrer os últimos oitenta quilómetros até Albufeira, também a custo zero. Qualquer turista espanhol, ou outro que faça o mesmo trajecto, achará por demais óbvio pagar, de futuro, ao entrar em Portugal. Creio bem que o melhor seria substituir os gigantescos outdoors à entrada da fronteira, com a inscrição grotescamente inglesa de: "Welcome to the European Stadium", por um também gigantesco, desta feita em várias línguas, com a inscrição "Somos pindéricos - Paguem-nos portagens". Como a 125 é uma alternativa segura, rápida e eficaz, a Via do Infante deverá ter um estatuto de luxo. Faz todo o sentido.

E consolidando o repositório...

(Esta é uma peça de jornalismo de antecipação, feita pelo visionário António Andróide da Nação. Estamos - era a edição de Dezembro de 1999, com efeito, a iniciar um ramo vanguardista da informação. Considerando que a peça em questão, é um retrato fiel e imparcial do próprio fim do Mundo, não podemos, portanto, acalentar um promissor futuro para esta novíssima forma de jornalismo. Paciência, não é?)

APOCALIPSE

31 de Dezembro de 1999


6.30AM (no meu relógio)- WASHINGTON DC
Bill Gates entra esbaforido no gabinete de Clinton, com uma folha de fax, amolgada, na mão. Diz a gaguejar: “-Já leste esta merda?” Clinton coçava distraidamente a virilha enquanto pensava: (-Raios partam a doida da Monica mais os herpes...). Gates agarra freneticamente nos colarinhos de Clinton e vocifera: “-O que é que fizeste desta vez, para que Deus nos lixe desta maneira? Está escrito no fax que a decisão de acabar com o Mundo, deve-se a incompetência de gestão humana. Justamente agora que já conseguia controlar totalmente as mentes dos meus webzinhos.” Clinton liberta-se das mãos de Gates, coça desesperadamente as virilhas e responde: “-Não fui eu. Sempre tive autorização suprema para fazer as minhas guerras. Deve ter sido o doido do Saddam que O irritou. Mostra lá o fax!” Gates desata num pranto horrendo, enquanto Clinton lê o fax. Batem à porta. Entra um secretário com um telegrama de última hora. Clinton pede-lhe que o leia. O secretário, com uma voz solene, pronuncia: “- Inclemência total STOP Arrasamento já marcado e processo iniciado STOP Ninguém ficará incólume STOP Céu já cheio de aventesmas STOP Saraivada de meteoritos incandescentes de última geração em impacto total às zero horas de dia 1 STOP Amanhem-se STOP Assina: Anjo-Mor do Ministério de Destruição Suprema.” Clinton coça com raiva as virilhas e pensa: (-É o fim, foda-se! O fim...). Gates enfia violentamente a cabeça pelo monitor do PC de Clinton e morre electrocutado. O secretário pergunta displicente: “-Além da corja habitual, quantas gajas quer que eu mobilize para levar para o bunker?” Clinton não responde e coça-se, coça-se, coça-se...

9.30AM (no meu relógio) - LISBOA
Guterres entra despenteado na biblioteca onde se encontra Sampaio, e exclama: “- Já recebeste a informação da embaixada Americana? Parece que a Europa também não vai escapar. Porquê? Agora que tudo corria bem. Os meus congéneres europeus começavam a levar-me a sério e o povo adorava-me.” Sampaio levanta os olhos da obra de Nostradamus que estava a consultar, fita Guterres e diz-lhe: “Preocupaste-te demais com o Marcelo e descuraste as ligações celestiais. Sempre te disse que ir à missa não era suficiente. Eu lavo daí as minhas mãos. Fiz tudo o que um Presidente deve fazer: presidi. Mais não me competia. Vou preparar um discurso para ser proferido hoje à Nação. Exaltarei o espírito Lusitano, que persistirá, mesmo nos escombros e na total aridez humana.” Guterres sai a correr. Leva consigo a ideia fixa de meter uma cunha no Departamento de Jobs For The Boys do Paraíso. Sampaio mergulha de novo nas profecias.

11.00AM (no meu relógio) - ALBUFEIRA
Xufre, dentro dos seus botins e em cadência galopante, irrompe pelo gabinete de Catuna que está de pé olhando o vazio. Fitam-se entristecidos e desesperados. Abraçam-se efusivamente. Ficam assim durante bastante tempo. Finalmente Catuna quebra o silêncio: “- Eu bem te disse que devíamos ter construído um abrigo nuclear na cave do mamarracho.” Xufre responde: “- Não iria valer de nada. Soube por fontes bem informadas que ninguém vai escapar. Adeus Albufeira 2000.” Suspiram. Voltam a suspirar.

11.30 AM (no meu relógio) - BAGHDAD
Saddam Hussein prega carolos a torto e a direito aos seus generais de confiança. Encontram-se no salão rosa do seu bunker situado no meio do deserto. Monica Lewinsky, gorda que nem duas lontras, rebola no chão e implora: “- Husseininho deixa-me chupar-te pela última vez.” Saddam está possesso e diz-lhe: “- Vai divertir-te com o sacana do pastor alemão.” Depois, vira-se para o único general que não tinha levado carolos, e pergunta em tom agressivo: “- Porque carga de praga islâmica, não fui informado há mais tempo? É o fim do mundo e querem deixar-me de fora? Mas não! Desta vez vou participar activamente. Tenho de me antecipar e estoirar com os suicidas-islão-nucleares que se encontrem disponíveis nos Estados Unidos. Ah! Cabrão de Clinton, apesar do teu Deus, afinal, ser mais Deus que o meu, também te vais fornicar. Esta será a Bisavó de todas as Batalhas.” De seguida telefona para os serviços de espionagem. Assim que atendem, Saddam berra histericamente: “- PUM! PUM! PUM! E depressa!...”

3.00 PM (no meu relógio) - VATICANO
O Papa, num lapso de heresia, parte o enorme crucifixo que se encontra na parede. Esconjura-se a si próprio. Sempre sofrera de raptus ocasionais. Pensa se tudo não se deverá à célebre história dos preservativos. Teria Deus preferido controlar melhor a sida? Será que haviam projectos no Céu para uma melhor Humanidade, e ele, desinformado, tinha deitado tudo a perder? Dirige-se ao intercomunicador e pede o baú das hóstias de penitência. Entram vários bispos e um séquito solene. O Papa pronuncia: “- Tragam-me a garrafa de tinto de Abel Pereira da Fonseca de 1955. Para morrer, há que beber o líquido apropriado. Quanto a vós, fazei do livre arbítrio o que vos der na telha. Já sei que nem eu posso meter o bedelho no Paraíso. Aguentai-vos. Sabem o que têm a fazer neste momento. Eu estou pronto. Amém.” Um dos bispos despeja-lhe o tinto pelas goelas abaixo. Afasta-se. O Papa fica só, em convulsões, no centro do enorme salão. Os bispos e todo o séquito começam a lançar, sobre ele, hóstias de um quilograma cada. O Papa sucumbe. Depois, todos tiram debaixo das sotainas as suas hóstias de cianeto. Engolem-nas. Entoam cânticos gregorianos. Concentram-se e esperam. Lacrimejam muito.

7.00 PM (no meu relógio) - ALGURES PELOS E. U. A.
Os suicidas-islão-nucleares implodem à hora marcada. O material explosivo não funcionou, pois, o equipamento tinha sido vendido ao Iraque por uma empresa norte-americana. Os afro-americanos assaltam supermercados e sufocam com as bocas cheias de chewing-gum. Os chineses afogam-se nas suas máquinas de lavar roupa e apanham overdoses de arroz xau-xau. Os italianos enforcam-se em esparguete. Todos os mafiosos, de todas as origens, metralham-se e esfaqueiam-se como podem. Os lunáticos de Wall-Street fazem fogueiras com acções, relatórios e inventários, e mergulham de seguida nesse fogo purificador. É um caos lindo. Por todas as montanhas e pradarias ecoam gargalhadas índias ancestrais.

7.00 PM (no meu relógio) - ALGURES NO ALENTEJO
- Ei compadri, já ouviu o que se anda por aí falandu?
- Nã te priocupis, pois o padri, que está bem relacionadu com os altos comandus, garantiu-mi qu’essas desgraças não vão cairi aqui na nossa terra. Deus afinali tem uma costela alentejana, e o fim do mundo, aqui no alenteju, seria uma carga de trabalhus.

11.00 PM (no meu relógio) - LOCAL: ONDE CALHAR
Em Lanzarote, Saramago reflecte acerca da sua hipotética responsabilidade nisto tudo. (-Será que aborreci O Gajo com a história do Evangelho? Não pode ser. Ele é um descarado plagiador, isso sim. Agora que eu ia a meio do “Armagedon Segundo o Nobel Latino”, zás, prega-me com o fim do mundo a sério. Não há direito. Será que a SIC está por trás disto?). Vocifera em português vernáculo: “Aaaaaiiiiiiii! Que porrrra!...”
No seu Ministério, M.M.Carrilho, fechado no douradíssimo WC, faz força e reza. Lê uns apontamentos acerca de Bandarra. Puxa o autoclismo. Tapa a sanita. Senta-se. Volta a rezar.
Em Miami, Liberto Mealha recebe um telefonema de Anthony: “- Boss desta vez não posso fazer nada. O reveillon foi p’ró maneta. E agora?” Mealha responde: “- Não há motivo para preocupações. Já tenho um alvará para abrir um LM Club no Inferno. Contrata gajas, mas boas, ouviste? O dono do “espaço” não tem pachorra para santinhas e...”. A chamada cai. Anthony continua agarrado ao telemóvel e desata a ligar, a ligar, a ligar...
Na Oura, Henrique e Pescada entreolham-se. Henrique pergunta: “- E agora? Não há capítulo sexto?” Pescada pensa, pensa, pensa e acaba por responder: “- Já sei ! Mudamos o nome para EPÍLOGO e ainda facturamos hoje à grande. Com sorte, isto só estoira amanhã.” Esfrega vigorosamente as mãos. Henrique sorri fragilmente.
O nosso editor, na sua casa em Lisboa, depois de bebidas as duas garrafas de Jameson, ingere um ácido lissérgico guardado religiosamente para a ocasião. Senta-se. Ouve Pachelbel e masturba-se. Grita: “- Que as hormonas, o whisky e a loucura nunca se percam no Universo!” Tomba e assim fica para sempre. A Madalena Arrependida, de ocasião, que está sentada na sala, pensa: (- Já sabia que era o fim do mundo, mas podia ter arranjado um programa melhor, ó meu sacana...).

11.58 PM ( Greenwich ) - LOCAL: Centro de Comandos Celestiais
Cristo está entretido no seu PC, jogando um jogo recente, intitulado: “Caça aos Romanos”. Delira de gozo, pois já apanhou Pilatos, e agora parte à procura de César. Deus-Pai anda atarefadíssimo a dar ordens para a esquerda e para a direita. Tudo está a correr como previsto. Numa sala contígua, estão reunidos todos os consultores de Deus-Pai : Buda, Maomé, Ra, Thor, Zeus, um esquimó com alma de foca, Galileu, um ET, Einstein, uns quantos Messias desconhecidos, dois druidas, três feiticeiros africanos, Hitler, Ghandi, Rockefeller, Estaline, Mao, e muitos, muitos outros. Aguardam o momento da grande reunião. Deus-Pai, entretanto, assegura-se junto dos seus anjos-engenhistas, que todo o processo de destruição se encontra pronto a ser executado. Está francamente jubiloso. Suspende o Tempo em todo o Universo. Entra no anfiteatro. Todos ovacionam de pé. Dirige-se à audiência: “- Caros companheiros e colaboradores: vou hoje dar por findo, um projecto experimental que iniciei há longos milénios. Não estava previsto, inicialmente, que tivesse de ser assim o desfecho do “Adão e Eva - Modelo 1”. Ao longo de alguns milénios pus em campo colaboradores, tais como: Genghis Khan, Hitler, Estaline, toda a equipa da Inquisição e outros; para que reduzissem a epidemia descontrolada do crescimento da Humanidade. Os homens não aprenderam nunca. Desde a fase 2 do Paraíso, em que os dois irmãos desataram à porrada, que poderia ter terminado num ápice a brincadeira. Contudo, moveu-me uma curiosidade científica de propagação do fenómeno. Desde este momento em diante, teria bastado ao Homem cooperar mais e procriar menos. Mas não. Armaram-se em competidores e procriadores, monotonamente, ao longo dos tempos. Arre que é serem burros. Dei-lhes um ADN fabuloso. Providenciei-lhes a memória. Facultei-lhes um Filho, em dado momento, como assessor. Forneci-lhes a morte para que o tédio tivesse fim. Dei-lhes uma alma para se divertirem com a solidão. Enfim, mimei-os o mais que pude e cedi-lhes o livre arbítrio, aplicável até em questões sexuais. Foram sempre tão estúpidos que, por tudo e por nada, estavam sempre a chamar-me. Preferiram sempre uma qualquer felicidade tacanha, a serem realmente livres. Mataram-se e traíram-se às carradas. Tornaram-se mesquinhos e mirraram as almas. Nunca aprenderam nada de jeito. Eram lerdos como o caraças. Trabalhavam imenso para produzirem montes de merdas inúteis. Comiam quase toda a bicharada que eu criei. Dificultaram a vida uns aos outros. Corromperam-se e não sabiam gerir os imensos recursos. E, como se isto tudo não bastasse, não liam o SULturas. Concluindo: deturparam e adulteraram a minha experiência, ó aberrações ! Portanto, RAIO QUE OS PARTA.”
Toda a sala ovaciona de pé. Ouvem-se exclamações apoteóticas. Um enorme ecrã começa a descer sobre o palco. Inicia-se o concerto, com Wagner a comandar com batuta laser. Cristo chega à tribuna e esboça uma intenção de discurso ao ouvido de Deus-Pai. Este vira-se para o filho e diz: “- Se me vens chatear com a história do perdoa-lhes, prego-te uma lambada mesmo em público.” Cristo amua. Todos os anjos-mor atarefam-se nas suas funções. Nos bastidores, alguns querubins divertem-se à traulitada com amostras dos meteoritos. O concerto termina com um grande bang. Deus-Pai reactiva o Tempo em todo o Universo. Faz sinal para que se inicie a grande saraivada. O ecrã gigante começa a transmitir as imagens atrozes do impacto dos meteoros. Todos regozijam. O estrondo é brutal e esmagador. Alguns fanáticos uivam. No ecrã, a Terra começa a parecer-se com uma bosta de cão ressequida. Depois o som diminui gradualmente, e esvai-se no espaço uma coluna de fumo. A Terra é agora uma lua deficiente. No ecrã aparece inscrito: “Sic transit gloria mundi”. Deus-Pai convoca os seus melhores anjos-arquitectos e anjos-biólogos e desloca-se para o laboratório das criações. Tem um projecto para um Mundo com uma só raça mas com treze sexos. Providencia para que tudo gire à volta de hormonas, whisky e sã loucura. Os seus colaboradores anuem e abrem uma garrafa de espumante “Diviníssimo” Seco. Deus-Pai pronuncia: “Non nova, sed nove”.

Muito depois dos dias e das estações,
dos seres e dos países.

Rimbaud

sábado, setembro 11, 2004

Continuando com o repositório...

PALIATIVO
A minha dimensão é a solidão. Os poderosos são sempre estupidamente perigosos e os fracos inofensivamente estúpidos. Uns não podem com a minha resistência, os outros com o meu carácter. Mas, na verdade, o que lhes causa eczemas mentais no espírito epidérmico e apertadinho são as raízes da minha liberdade. Arre! que nunca compreenderam que a vida só poderia ser uma grande sinfonia; e tudo isso sem grande esforço. É complicado? Pois seja. Então não me digam nada. Estou farto de competitivos e de cooperativos. Quero uma pátria de solitários. E quanto a morrer, só quando eu quiser – ou seja, antes do destino mas depois da medicina, e nem a mãe Natureza me pode vencer nisso. Depois disso, tornar-me-ei compreensível para todos vós. Há por aí um projecto para um novo Mundo? Convidem-me! Não me chateiem com ninharias. Deus é meu amigo. Eu não sei ter amigos. Já Lhe pedi, contudo, uma borracha para apagar realidades. Foi-me recusada sob o pretexto de ser uma arma letal nas mãos dum esteta. E eu que só queria apagar umas coisitas. Existem as bombas, é certo, mas o estrondo incomoda-me mais do que o fulgurante efeito me poderia satisfazer. Às vezes também odeio, mas curo-me depressa. E isto da bomba seria mais pelo tédio. Sou um pachorrento sentimentalão. Até a estupidez por vezes me enternece. A maldade aborrece-me, só pelo facto de ser quase sempre tão primária. Acabo por gostar de alguns filhos-da-puta. É aquela treta do ser humano. É claro que a matéria, essa meretriz evidente, me perturba. Doutro modo como teria tesão? Mas há que convir que é repelente. Tanto a erecção como a trampa da biologia que a inspira. Há o amor, pois claro! Mas já está tão usado, até pelos medíocres e outros pimbas, que já não sei o que lhe fazer. Adoro os meus filhos, acima de tudo, pelo facto de só poderem vir a ser melhores que eu: mais rectos e imparciais, rápidos e racionais, intensos e rigorosos, polidos e matemáticos, filósofos de software, românticos materialistas, niilistas de hipermercado, sensíveis de alta tecnologia, egocêntricos de cortar à faca, narcisos de outdoor, apaixonados virtuais; enfim, uns andróides quase perfeitos num infindável mundo de quadrúpedes. Continuará, apesar de tudo, a haver o problema de serem muitos. Não me canso de perguntar: porquê tantos? Para quê tantos? Está muito certo que cada homem seja um símbolo, não consigo é conceber a utilidade de tiragens maciças em metrópoles fotocopiadoras, a partir de um original de má qualidade. Deve haver algures a possibilidade de ser-se mais que “homem-apenas”. Ou então não haja. Raio de mania de querer sublimar a nossa fedorenta condição com recheios perfumados de espiritualidade. Hoje existo e basta-me. Hoje insisto e basto-me. Amanhã estarei simplesmente mais cansado de existir e insistir. Pensar é apenas um género erudito de dor de cabeça ... E sentir o Universo, afinal, é apenas um imenso paliativo.

domingo, setembro 05, 2004

E de novo para o repositório do SULturas (pasquim), fica o editorial do último Nº de 1999:

EDITORIAL
ARRE 2000

TAL COMO DIRIA O MESTRE ALMADA NEGREIROS: “ AS PÁGINAS QUE SE SEGUEM SÃO PARA LER PELO MENOS DUAS VEZES PELOS MUITO INTELIGENTES; DAÍ PARA BAIXO É SEMPRE A DOBRAR ! ”

BEM-VINDOS AO TEMPO DO PRONTO-A-PENSAR, DO DINHEIRO COMPRADO, DA CIÊNCIA DE SUPERMERCADO, DA ARTE DE LINHA DE MONTAGEM, DO COMÉRCIO DE SONHOS AVULSO, DA ESPIONAGEM DE SONDA INTRA-RECTAL, DOS POLÍTICOS PRÉ-FABRICADOS. BEM-VINDOS AO ESGOTAMENTO POR EXCESSO. BEM-VINDOS AOS EXCESSOS DOS SERES ESGOTADOS. BEM-VINDOS AO TEMPO DOS MEDÍOCRES E SEUS DESCENDENTES. BEM-VINDOS A UM TEMPO DE TODAS AS AUSÊNCIAS ESPIRITUAIS REPLETO DE MATÉRIA DE MÁ QUALIDADE. BEM-VINDOS À POLÍTICA DE MARKETING E AO MARKETING DA POLÍTICA. BEM-VINDOS AO TEMPO DO ESVAZIAMENTO DOS VALORES E DA COMPRA DE PERSONALIDADE… BEM-VINDOS AO TEMPO DA FALTA DE TEMPO. BEM-VINDOS AO MUNDO DA CANALHA PINDÉRICA E GROTESCA ARROTANDO PREPOTÊNCIA E NOTAS DE DEZ MIL. BEM-VINDOS AO ESPLENDOR DA BOÇALIDADE PÓS-MODERNISTA. BEM-VINDOS À SACIEDADE DE CONSUMO. BEM-VINDOS AO TEMPO DOS DIREITOS HUMANOS COMPRADOS COM DIPLOMACIA LERDA A PREÇO DE OCASIÃO. BEM-VINDOS À LIBERDADE DA PERMISSIVIDADE COM O AVAL DE MENTORES ECONÓMICOS DE IDEAIS EM SALDO. BEM-VINDOS SEJAIS PELA VOSSA PRESENÇA E CUMPLICIDADE NESTAS MERDAS ACIMA DESCRITAS. BEM-VINDOS EM GERAL A ESTES DIAS TÃO PARTICULARES. O LEITOR TALVEZ NÃO SAIBA QUE NEM SEQUER PRECISA DE BILHETE PARA ASSISTIR AO GRANDE CIRCO DO MUNDO DE HOJE. BASTA-LHE TER OLHOS E UMA TV. SE NÃO ESTIVER NA BANCADA, LIMITE-SE A FAZER MASSA NA PLATEIA. BATE SEMPRE TUDO CERTO. ESPANTE-SE DE TUDO POR EXCLUSÃO DE PARTES. EMPANTURRE-SE DE NADA POR INCLUSÃO NO TODO.


sexta-feira, setembro 03, 2004

E retirado da ancestral INÉDITA, surge ainda o

B-52

(como todos sabem, deve-se incendiar o absinto antes de ingerir pela palhinha)
Talvez fosse melhor dizer que te amo. Mas vou ficar em silêncio mais uma vez. Nestes dias que correm, em direcção a nunca mais, a guerra voltou e o mundo tornou-se num lugar comum sem qualquer sentido, onde resisto atordoado. O facto de há muito sabermos tudo isto, não nos alivia em nada. Estamos mais velhos, usados, sábios casualmente. Logo à noite podemos colocar as máscaras de gás e fazer amor desesperadamente. Terás um orgasmo de alta precisão e entre dois cigarros gozaremos o facto de sermos tão ocidentais. Presumo que Deus ainda goste de nós. Toda a vida é um somatório de absurdos, assente numa mecânica biológica ao serviço de um espírito sem trambelhos. Gostava, em oposição ao destino, de ter sido mais egoísta, estúpido e despreocupado. Talvez os católicos tenham razão quando dizem: acautelai-vos precisamente nesse último momento – o pórtico para a eternidade. E se for com uma bala nos cornos? Como maquilhar então a alma nessa fracção de um instante? Recorda-me amanhã para me manter vivo. Sim, que o processo começa a requerer concentração, método e esforço suplementares. Para a nossa velhice penso em vir a adoptar um casal de gatos radioactivos. Os bichos passearão pelas lixeiras, enquanto nós nos espreguiçaremos frente a um oceano negro e oleoso. É por demais óbvio que seremos felizes. Talvez fosse melhor dizeres agora que me amas. Mas, como sempre, preferes divagar acerca dos planos para o próximo fim-de-semana. Como és incrivelmente bela nestes momentos. Poderia recomeçar noutro ponto, encaminhar a coisa noutra dimensão, falar do barulho ensurdecedor da guerra, dos seus efeitos devastadores e dos danos colaterais, dissertar acerca dos significados ocultos de todo o processo, providenciar propósitos políticos, tornar-me um brilhante analista, escrever até preencher toda a página, etc. etc. etc. Mas vou ficar em silêncio mais uma vez. As bombas, por seu lado, continuarão a cair.

hits. online
adopt your own virtual pet!

This page is powered by Blogger. Isn't yours?