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domingo, outubro 31, 2004

CALLING LONDON (Sabina's place)

You're my favourite

In my time I've told a lie or two,
I've been a deceiver, but believe me
what I now say is true.
There's no other way
I can express what I'm thinking of:
You're my favourite, you're the one that I love.

It's a one-horse race,
still I'm ready to place my bet.
I'm a pretty slow starter,
and I haven't quite caught up with it yet.
It seems so extraordinary
that you should care for me.
You're my favourite - how lucky can any man be?

You're my favourite -
will you stay the course with me?

You're my favourite of all time.
You're my favourite, can't you see?
You're my favourite of all time.
Say you'll stay the course with me.

Lyrics from Peter Hammill

sábado, outubro 30, 2004

O dia da criação

Vinicius de Moraes

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27


I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.


II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado


III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

domingo, outubro 24, 2004

FUTUROLOGIA

Ide ver em Março de 2006, o poema "Pode-se Escrever", de Pedro Oom...

sábado, outubro 23, 2004

José Souto Moura recusa demitir-se do cargo de Procurador-Geral da República (PGR) na eventualidade de o processo Casa Pia vir a ter um desfecho desfavorável ao Ministério Público. No final da entrevista dada ao Expresso diria: “Foi o PS que me escolheu para PGR. Portanto, a última pessoa interessada em fragilizar ou prejudicar o PS seria eu”. É óbvio que não se pode desiludir os padrinhos, pá. E finalizou arrematando "daqui não saio daqui ninguém me tira"!

O governo vai extinguir o cargo de Director-Geral dos Impostos, revelou o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Orlando Caliço, adiantando que também vão desaparecer os cargos de directores-gerais das Alfândegas e da Informática.
Numa entrevista publicada este sábado no semanário “Expresso”, o governante adiantou ainda que as três direcções-gerais extintas passarão a ser dirigidas pelo novo Conselho de Administração das Contribuições e Impostos, para o qual o governo indicará seis personalidades.

Saem três entram seis. A lógica é uma boa lógica.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Felizmente será só lá para Abril do ano que vem...
A ser agora, à pergunta de "concorda com a constituição?", 80% - dos 27% de eleitores inscritos que compareceriam, responderiam por escrito: Hã?; 15% responderiam "qual constituição?"; e os restantes 5% dividir-se-iam pelo sim e pelo não.
Não tratem de esclarecer devidamente a coisa no prazo de permeio e verão o resultado de afluência ao referendo.

POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

terça-feira, outubro 19, 2004

Mais de dois terços dos portugueses considera que o PSD e o CDS-PP não devem apresentar-se coligados nas próximas eleições autárquicas e legislativas. Corrijo: pelo andar da carruagem não devem apresentar-se e ponto!

Na Mesa do Santo Ofício

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que passa que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhe dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.

Ary dos Santos

Esta manhã foram ouvidas duas fortes explosões numa zona descampada junto à estrada da Senhora da Saúde, próximo de uma das entradas da cidade de Faro, no Algarve. Desconhece-se ainda o que terá causado as deflagrações.
Pronto, já começou. Depois não digam que não os avisámos atempadamente que as portagens na A22 iam dar estrondo. E isto é só o começo meus senhores!

domingo, outubro 17, 2004


Estarei por aí amanhã STOP amigo Zé prepara o medronho STOP


Para os cuscos e fãs curiosas e à laia de profile em jeito de registo provisório, aqui vai...

Baptizaram-me Nuno Elmano há quarenta e três anos atrás e fizeram eles muito bem.
Mas na realidade a minha idade de consciência vai para além dos vários séculos que já vivi (o terceiro alucinado a contar da esquerda - numa qualquer gravura da época, com uma bandeira esfarrapada na mão, na tomada da Bastilha, era eu!).
Eventualmente serei, aqui no século XXI, um fantasma virtual de mim próprio.
Penso que o mundo cada vez mais sabe menos para onde vai.
Divirto-me a escrever e a ser aquilo que este invólucro corporal me permite.
Gostaria de ter uma existência mais útil e organizada em função dos outros, mas cheguei à conclusão que os outros não merecem. Por isso continuo a desenvolver futilidades à brava e a gozar à ganância.
Qualquer dia inicio uma carreira política de modo a acabar de vez com a política no Mundo. Marx errou em menos de um século, eu acertaria para a posteridade.
Creio que o capitalismo tem os dias contados. Só quem não sabe disso são os próprios capitalistas.
Tenho um currículo de hectolitros de álcool, mas por oposição ao que a maioria dos palermas pensam acerca do assunto, tal facto alargou-me a lucidez, regou-me de sã loucura e besuntou-me de charme.
Acho que a modéstia assenta bem aos modestos.
Gostaria de ser muito rico para nunca mais aturar burgessos, bimbos endinheirados e mulheres plásticas.
Se tivesse uma ilha no Pacífico comprava um canhão setecentista e declarava guerra aos Estados Unidos.
Se me saísse um jackpot do totoloto, fretava uma centena de TIRes cheios de bois e vacas e fazia uma largada em plena Lisboa.
Considero que os Portugueses são um excelente povo governado por políticos imbecis, contrariamente aos Ingleses, que são uns imbecis governados por excelentes políticos.
A frase que mais me impressionou e marcou para todo o sempre: “Coisas da vida!”

sábado, outubro 16, 2004

E para desopilar um pouco da morte e de literaturas cavernosas, pode-se sempre atender um

TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias. Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.
Mário-Henrique Leiria in Contos do Gin-Tonic

Da Áustria com uma pitada de intrínseco horror, e com muito mais negrume conturbado e denso, num ponto de insustentabilidade psicológica, deixo-vos com algo mais pertinente, residente no âmago das nossas profundezas, que produz um efeito corrosivo nas almas desatentas, ao ponto de se soltar o grito condensado de toda uma vida, comparativamente aos universos de esquartejamento sociais de Elfriede Jelinek.

De uma vez esteve sentado durante oito horas na igreja de Santo Estêvão, fria como gelo, fitando fixamente o altar, pô-lo na rua o sacristão com a desculpa: vamos fechar, meu caro senhor. Ao sair tinha dado ao sacristão uma nota de cem xelins, uma completa leviandade, dissera o Wertheimer. Eu tinha querido permanecer sentado na igreja de Santo Estêvão, até cair morto para o lado, dissera ele. Mas não o consegui, mau grado a extrema concentração nesse meu desejo. Não fui capaz de me concentrar até ao mais alto grau, disse ele, e os nossos desejos só se realizam quando conseguimos concentrar-nos neles até ao mais alto grau. Desde criança tinha tido sempre o desejo de morrer, de acabar com a vida, como se costuma dizer, mas nunca se tinha concentrado até ao mais alto grau nesse desejo. Nunca tinha sido capaz de se adaptar a um mundo que, afinal, lhe havia sido sempre adverso absolutamente em tudo, desde a primeira hora. Foi crescendo e julgou que este desejo morreria, que desapareceria de repente, mas este desejo tornou-se de ano para ano mais intenso, conquanto não tenha atingido a mais extrema intensidade e concentração, dizia ele. A minha curiosidade, sempre renovada, impedia-me o suicídio, assim dizia ele, pensava eu. Ao pai não perdoamos que ele nos tenha feito, à mãe não perdoamos que nos tenha parido, dizia, à irmã não perdoamos que seja continuamente testemunha da nossa infelicidade. Existir não significa mais do que isto: estarmos mergulhados no desespero, era assim que ele dizia. Quando me levanto penso em mim com repulsa, e horroriza-me a ideia de tudo aquilo que me espera. Quando me deito, não tenho outro desejo senão morrer e não voltar a acordar, mas depois acordo de novo, e este processo atroz repete-se, acaba por se repetir ao longo de cinquenta anos, dizia ele. Pensarmos nós que no decurso de cinquenta anos não desejamos outra coisa senão morrer, e que, todavia, continuamos a viver e nada podemos fazer contra isso, porque somos totalmente inconsequentes! assim dizia ele. Porque somos a própria miséria, a própria infâmia. Não temos o menor talento musical! Exclamou ele, o menor talento para a existência! Somos tão arrogantes que julgamos que o importante é estudar música, e afinal nem sequer temos aptidão para viver, nem sequer estamos em condições de existir, porque nós na realidade não existimos, é o estudar música que nos existe! assim dizia ele na Waehringerstrasse, depois de termos percorrido durante quatro horas e meia a Brigittenau até ficarmos completamente exaustos.
(trecho de “O Náufrago”, Thomas Bernhard, ed. Relógio D`Água)

sexta-feira, outubro 15, 2004

Pedro de apelido Simplesmente

Pedro Simplesmente era um homem; de sexo, atitudes, comportamento e impostos em dia. Um homem com as medidas que suscitam o entendimento de outros homens, sem subterfúgios ou truques de alma. Apenas isso, equacionável e senhor de “bons-dias”. Homem de poucas palavras e perfeitamente compreensível. Tinha um emprego, uma mulher, um passado e uma presença sem mistérios, assim mesmo, decifrável num primeiro encontro. Nada de enredos. Tudo simples e por demais óbvio, sem nunca elaborar opiniões rebuscadas. Estar vivo requeria-lhe apenas atenção, persistência e uma dose de amor. Guardava para si as interpretações ou visões que lhe causassem incómodo ou apreensão. Sabia no entanto que tudo tinha um outro significado que estava oculto no dia-a-dia. Suportava o quotidiano como uma lei socialmente elaborada, respeitava-a e nunca encontrara maneira de a refutar. Os seus domingos estavam cheios de boa-vontade, quase religiosa, e um pouco de bricolage. Também via televisão. Gostava de poder pagar copos aos amigos de ocasião, seres improváveis das 18 às 20 horas, com quem mantinha conversas acesas ou amenas, de assuntos tão diversos como os copos, os amigos ou as tascas onde tudo isto acontecia. Nunca exigira nada do destino. Não transportava inveja ou ambições. Apenas esperava vir a ter uma velhice serena, com almoço e jantar diários e, eventualmente, visitas quinzenais do seu filho. Talvez um pedaço de terra para preencher as manhãs da reforma. Tinham-lhe ensinado o respeito, a coragem e a humildade. Aprendera que a única virtude consistia em aliar estes ensinamentos à responsabilidade e assentou toda a sua vida nesta estrutura. Se Cristo pudesse ser seu contemporâneo, teria ido a sua casa comer uma feijoada. Votava sem furor e também assistia às inaugurações municipais sem entusiamo. Disse um dia que “o Mundo podia ser um sítio melhor”. Não tinha um Deus de serviço, mas pedia em silêncio, ao “desconhecido”, que nunca lhe faltasse saúde. Amava as coisas com a simplicidade própria de quem sabe que odiar é inútil. Sem paixão, fez amor com as poucas mulheres que se cruzaram na sua vida. Em tempos tivera um amigo, daqueles que ficam para sempre na memória. O tempo no entanto não pára. Embriagou-se deveras um dia e perguntou a um comboio para onde ia, para onde ia o mundo? O comboio não lhe respondeu mas ele riu-se muito. Como entendesse bem o silêncio, encontrou sempre respostas para os seus medos e ansiedades. Compreendeu e sentiu por vezes, que a razão era apenas uma palavra, nem sempre útil. Sonhou apenas enquanto dormia. Nunca teve uma atitude ofensiva, mesmo quando a violência esbarrava com a sua carne. Suportou ofensas e sarcasmos com um desprezo quase elegante. Gostava contudo de cães. Usava gravata em dias imprevisíveis. Frequentava supermercados com sentido crítico e manteve-se fiel à marca das bolachas e da pasta de dentes. Nunca comprou um bife maior do que o seu apetite. Era possuidor de um rigor absurdo em relação às suas necessidades, tendo uma noção matemática, invejável, que delimitava o útil do necessário. Com essa mesma noção, assente nesse mesmo rigor, elaborou contas que lhe revelaram que tinha de fazer milhares de parafusos para lhe pagarem o suficiente para comprar um sargo. Ficou decepcionado mas não disse nada. Pensou apenas na possibilidade e na viabilidade de, com os mesmos parafusos, ter direito a comer mais sargos. Nunca transportou estes resultados para as reivindicações dos seus colegas do sindicato. Disse sempre obrigado, quando lhe davam o envelope com as notas devidas, no fim de cada mês.
Foi por tudo isto que nunca ninguém entendeu como foi possível que, aquele mesmo homem respeitado por vizinhos e colegas, tivesse sido capaz de matar o encarregado, o patrão, o senhorio e o seu patrício, comerciante estabelecido, que tão generosamente levava, com assiduidade, a sua Matilde a passear no seu novo espada a diesel. E toda esta matança numa só manhã.
Todos os seus conhecidos foram ao julgamento, curiosos e perplexos. As respostas do réu, no tribunal, foram desconexas e atabalhoadas. Apenas houve coerência ao admitir ter perpetrado tais actos, recusando, no entanto, a responsabilidade dos mesmos. Segundo dizem os presentes e muito entendedores em matéria de julgamentos, era incrível como o réu negara sempre, perante as evidências, que a culpa fosse sua.
No dia do enforcamento, Pedro Simplesmente levou gravata e morreu a rir muito, depois de ter perguntado ao carrasco o mesmo que perguntara ao comboio no dia da sua única bebedeira.
Matilde Simplesmente ficou amnésica, desde o dia do funeral, devido a uma queda aparatosa, seguida de embate craniano frontal na pedra de mármore da sepultura do marido. Desse dia em diante, passou a tricotar toalhas de mesa, no mais profundo silêncio, e inscrevendo nelas sempre a mesma dedicatória: “Coisas da Vida”.
O filho do defunto, Paulo Simplesmente, fez carreira na polícia tendo chegado a chefe, contrariando assim a opinião de seu pai que o considerava débil e lerdo. Por seu lado, o seu neto, João Simplesmente, tornou-se revolucionário e activo militante numa organização bombista. Fazia cocktails molotov onde usava os muitos pregos oferecidos, aos herdeiros de Pedro Simplesmente, pela fábrica onde o mesmo trabalhara. O que este pensava acerca de seu pai era o mesmo que pensara o seu avô.
Com isto tudo, vá lá um comum mortal entender a mecânica dos factores hereditários.


quarta-feira, outubro 13, 2004

"Eu, Sempre..."

Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.

Mário Cesariny

Os anjos copiavam os homens;
os homens copiavam os anjos;
ambos copiavam a inocência;
a inocência copiava as feras;
as feras devoravam os homens;
os anjos devoravam as feras;
a inocência vestiu-se de roxo
pelo luto das futuras eras.

Natália Correia
83.02.11

segunda-feira, outubro 11, 2004

Sodomizados mas informados, fodidos mas prevenidos...!!!

Em memória de Lud
(Ludgero Viegas Pinto)

Disseram-me há dias - talvez o ano passado porque o tempo já nem o meço - que morreras. Não me surpreendi. Nunca avisaste ninguém de coisa nenhuma. Aceito este teu último capricho. E respeito-o. A morte teve sempre todos os direitos, tal como já alguém o disse. Disso sempre soubemos e rimo-nos . E afinal que tipo de fêmea fatal seria a morte? Termos acumulado consciência das coisas e da sua orgânica não nos tornou maiores, mas simplesmente mais dolorosamente sensíveis.
Atravessaste manhãs com a alma transbordando por esses olhos imensos raiados de amor. Tudo sempre sem retorno possível. Sem tara ou depósito previsto pela lei. Avançaste sobre o Mundo com o sentir do outro lado do Universo e com a compaixão grávida de poder abraçar toda a Humanidade no simples regaço da varina mais infeliz ou do bêbedo mais desprevenido.
Se a obra não foi prolífera ou talentosa como os abutres catalogadores o exigem, o teu coração, alagado de Lisboas matinais a rasgarem-se em côr, onde os seres surgem como aventesmas corpóreas e o Sol lambe encostas e colinas, há-de superar para sempre a mendicidade intelectual dos encadernadores do espírito. Ultrapassaste em visão acelerada a enxorrada de imagens múltiplas e repetidas duma realidade gasta. Extravasaste todo o Ser possível em metáforas mais duras que as pedras destas calçadas que sempre percorreste. O que viveste, eles nunca o suporão. E se por acaso o fizerem, ficarão a saber o mesmo. Isso já ninguém to rouba. Único; deveras ulceroso-espiritual.
Disseste-me uma manhã: "Não há razão ou criação, há simplesmente o explodir das mãos em incessante descoberta." Nessa mesma manhã, onde os pássaros estúpidos poisavam sob a tua janela em demanda de milho. Precisamente os mesmos pombos que por sujarem o carro do Sr. Oficial da Marinha, fizeram-te criar a solução para os seus excrementos: "rolhinhas nos ânus dos animais, fabricadas pela Câmara Municipal!"
Talvez não soubesses mais do que tudo o que naturalmente te acedeu encontrar - e soubeste encontrar o muito da tua vida, mas na atitude sábia de estar-se quieto e tudo observar, a qual nos compete e sempre nos deveria nortear, tiveste a noção suprema do inconsciente (surreal se eles assim o quiserem ditar), dentro da medida exacta de tudo. E acredito que Deus, no seu tédio imenso, há-de perdoar esse olhar afoito e por demais crítico sobre a realidade. Presumo que já possas ter conhecido personagens influentes no Domínio Celestial e, como tal, a decoração de tais espaços possa começar a ser uma obra maior a realizar pelo teu génio manso.
A frase feita a dois e por demais filosófica - "Ó caralho! Que poderia ser tudo menos isto...", vou agora utilizá-la nos bancos, repartições, esquadras, ministérios, circunstâncias sociais, restaurantes e tascas, em qualquer praça pública, ocasiões de solidão e, quem sabe, no momento da minha morte.
Saudades e outras tantas saudades das salutares vãs conversas, agora para sempre ausentes, ficando eu com o horror de nunca mais acontecerem.

quinta-feira, outubro 07, 2004

Comprova-se: isto não é um país é um local mal frequentado. Não basta ficarmos pelo providencial "pobre país o nosso" do Pacheco Pereira, é preciso ir mais longe e averiguar o porquê desta miséria lusitana e da sua desnorteada máquina de estado, (des)controlada por sucessivas histéricas medidas governativas. A gravidade deste preciso momento político é a de os governantes terem perdido a noção da governação. Na sua aflição de náufragos no mar interno do seu partido e no oceano da impopularidade geral, arrastam consigo, para o fundo, todo um país. Sócrates tem todos os motivos para ambicionar vir a ser um musculado nadador-salvador da pátria, mau grado o facto de ter estagiado nas hostes laranjas. Mais, a actuação do actual executivo está a fornecer-lhe todos os meios para o conseguir.
O endurecimento do poder político requer subtilezas próprias de grandes estadistas e não medidas de amputação ou de asfixiamento. Empolgar os comentários de um comentador é conceder-lhe mais protagonismo. E convenhamos que a tarefa de opinion maker do professor Marcelo tinha somente o seu relativo peso. Posto isto convem apenas acrescentar que um ministro, num estado de direito, não pode dizer bojardas impunemente, pior, não pode coagir oponentes. Triste momento este em que assistimos ao desabrochar de uma nova vertente nas esferas do PSD: os tangerinas tenebrosos.

terça-feira, outubro 05, 2004

COERENTEMENTE

Coerente é o estrondo da bomba e toda a estilhaçada posterior.
Coerente é a birra da criança e por vezes o homicídio da avó.
Coerente é o cancro e o vírus mais teimoso.
Coerente é o sexo erecto e a irresponsabilidade do acto consequente.
Coerente é o sacana do Tempo e a queda de cabelo.
Coerente é a aparição de Nossa Senhora e o espanto com fé da tia Matilde.
Coerente é a barraca cabriolet e o chuto no Casal Ventoso.
Coerente é a vida do marinheiro e a gargalhada da puta reformada.
Coerente é o discurso demagógico e a taquicardia de um político.
Coerente é o doido que diz ser Napoleão e a tesão da enfermeira que o trata.
Coerente é o vómito, a diarreia e a sangria.
Coerente é a lógica da sopeira e o assédio do patrão.
Coerentes são dois ocidentais sentados num Z3 e cem africanos num contentor.
Coerente é a fome negra por um pão e a cremosidade do molho do bife de pimenta.
Coerente é o salário mínimo e o feriado para dormir a sesta.
Coerente é o estilo que se cultiva e o talento de estufa ou aviário.
Coerente é a verborreia das ideias moles e a hemorróida solitária da erudição.
Coerente é o apito do comboio quando avista o corpo do suicida e muito mais coerente é o cadáver esquartejado que jaz por todo o lado.
Coerentes são as mamas da mãe.
Coerentes são as bebedeiras do pai.
Coerente é Cristo que nunca mais se desprega.
Coerente foi Marx por nunca ter tido uma Sony na sala.
Coerente é o cozido à portuguesa frente à onda das mac-aquices.
Coerente é o vinho tinto e a sonolência após duas garrafas.
Coerente é a xaropada da legislação e coerentes são todos os antibióticos sociais.
Coerente é a água benta, a aguardente e a água-pé.
Coerente é o sacerdócio e a masturbação.
Coerente foi a invenção do papel higiénico.
Coerente é Portugal armado aos cucos.
Coerente é a sacana impingida da República e a estóica pachorra de Dom Duarte.
Coerentes são vinte e cinco por cento de portugueses na merda.
Coerente é a aflição de um peixe seduzido por um anzol.
Coerente é a boca de um canhão.
Coerente é a esterilidade do senso comum.
Coerente é o raio-que-os-parta a todos os que ficam abismados com as minhas incoerências.



sábado, outubro 02, 2004

E depois vou embebedar-me aqui...

Hoje vou jantar aqui...

INTERMEZZO


Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.
Fernando Pessoa


...e o raio que os parta aos medidores de almas!
Digo eu

Em suplemento vos direi que escrever é simplesmente a contabilidade inexacta da realidade. Transporto em mim os milhões de anos que me fizeram desaguar no dia de hoje. A mísera consciência quotidiana não é para aqui chamada, e reconheçam, ó descobridores, que as ciências ainda vão entrar no b e a, ba. Sou sangue-história, seiva-espírito, osso-rocha, mar-emoção, ar-intelecto, fogo-delírio, morte-antepassada, parto-porvir, sonho-matéria, amor-atlas, deus-deserto e também um cemitério de ideias. Sou ainda, somente e muito apenas e obviamente depois disto tudo, a minha mais inacabada e imperfeita criação. E se isto não é ser muito e emprenhadíssimo, que venha Buda e se sente em cima de mim!
A razão faliu quando alguém disse que a tinha. A partir daí nunca mais se recuperou. Tem andado combalida e repartida pelas bocas de muitos safardanas. Felizmente a razão é sempre pouca coisa, face ao ter que ser da dialéctica. Quem tem consciência das coisas não precisa de fazer alarido das mesmas. A História começa a não ter espaço para tanta alarvidade.
Cada parágrafo que escrevo é talvez um orgasmo que não tive. Opções. Um orgasmo é um poema em linha erecta que dispensa palavras. Ser animal é uma realidade em que a matéria suplanta o fantasma presente na nossa vontade. No entanto, o Espírito é o mais complexo dos nossos vícios. Tão somente. A matéria, por seu lado, é a mais cruel das metáforas. E com isto tem de se equacionar toda a vida.
Inventar todos os dias para que a festa seja franca, esse é o mais nobre dos objectivos. Viver torna-se grandioso pelo acto simples de impregnar tudo com o melhor de nós. Esbarra-se depois com o Mundo, único gigante, inalterável na sua condição de estar sempre em mutação, e como tal, esmagador, distante, básico na sua monstruosidade e sub-reptício na sua afirmação. Mas também ninguém nos disse que a tarefa não iria ser árdua, ó meus congéneres. Disso sempre estivemos cientes, facto que nos renova agora e sempre.
Ouviram bem, ó suburbanos da Liberdade?





sexta-feira, outubro 01, 2004

E de novo
Correia de Morais
in "Crónicas da Costa do Sol" - 1965

O SENHOR SENTADO
Aquele senhor está ali sentado muito de seu jeito. Sentado vitaliciamente e decidido a polir o assento até ao apodrecer da molécula. Sentado definitivamente e na irrevogável convicção de fazer parte do assento, no magnífico desejo de levar o assento consigo, se Deus lhe alterar a posição.
Verificou-se a fusão homem-assento, e por muito que se espreite, já não se entende onde acaba o homem e começa o assento. Assento e homem são inseparáveis, indivisíveis.
Não por culpa do assento. Assento é assento e está ali para isso. Não por culpa do homem. Homem cansado quer sentar-se e aquele homem sentou-se, de seu jeito. Mas no decurso do tempo, o assento anquilosou a espinha dorsal do homem, e o homem amaneirou o assento ao seu volume. E agora assento e homem são um todo, um vício e uma fatalidade.
Aquele senhor está ali sentado, muito de seu jeito. Sentado olimpicamente e a engordar na glória de estar sentado. Sentado à beira-mar e entretidíssimo a ver as ondas varrerem as praias; deliciado a contemplar as vagas a esmagarem-se nas rochas. E a olhar os mexilhões...
De seu jeito, aquele senhor está ali sentado. Não digamos nada que perturbe a paz daquele senhor. Não lhe criemos problemas de Turismo; não lhe inventemos dificuldades de Cascais; não comecemos a sonhar Costa do Sol.
Aquele senhor está ali sentado de seu jeito. Deixemos aquele senhor estar bem sentado.


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