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quarta-feira, março 29, 2006

Actuação Escrita


Pode-se escrever


Pode-se escrever sem ortografia

Pode-se escrever sem sintaxe

Pode-se escrever sem português

Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua

Pode-se escrever sem saber escrever

Pode-se pegar na caneta sem haver escrita

Pode-se pegar na escrita sem haver caneta

Pode-se pegar na caneta sem haver caneta

Pode-se escrever sem caneta

Pode-se sem caneta escrever caneta

Pode-se sem escrever escrever plume

Pode-se escrever sem escrever

Pode-se escrever sem sabermos nada

Pode-se escrever nada sem sabermos

Pode-se escrever sabermos sem nada

Pode-se escrever nada

Pode-se escrever com nada

Pode-se escrever sem nada


Pode-se não escrever


Pedro Oom

Actuação Escrita

Lisboa, & Etc., 1980

quinta-feira, março 23, 2006

E nem sei porquê veio-me o que se segue à cabeça, do Mário Cesariny

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinor

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(in «Pena capital», 1957)

segunda-feira, março 20, 2006

ASPIRINAS
(DOSES MÚLTIPLAS)

Fiz dos teus olhos longas paisagens
Para as esplanadas da minha melancolia

Criei no mar dos teus cabelos todas
As rotas da minha navegação

Assinalei por toda a tua pele
Os marcos das minhas descobertas

Entrando em ti perdi-me do tempo
E refiz sonhos e horizontes

Depois registei em conservatória apropriada
A patente dos beijos inéditos que te dei

Esculpi desejos no mármore do teu corpo
E incendiei a razão que nos fosse exterior

Inventei novos sentidos para a palavra nós
Enquanto crescia verdadeiramente como ser plural

Projectei cuidadosamente a estrutura da paixão
E lancei-me na obra imensa de viver...

É claro que, perante a insignificância
De tais actos e perspectivas acima descritos,
Preferiste sempre procurar um borrego endinheirado,
Trincar bimbos específicos de forma avulsa,
Entregar-te a qualquer troglodita musculoso,
Sentir emoções baratas com carne desalmada,
Pavoneares-te frente aos circenses nocturnos da “onda”,
Ou ficar encantada com os pintarolas colunáveis na “Maria”,
Para não falar nos chulos de segunda, duma qualquer terreola de terceira.

Mais tarde voltavas com um véu de mentira e um sorriso patético e traiçoeiro,
Na esperança de que a minha estupidez fosse suficiente
Para tornares a querer tudo o que não encontraras lá fora.

Por tudo o que ficou exposto, tenho a agradecer-te o teres-me devolvido
A real dimensão miserável da condição humana, ao ponto de cancelar
Alguns voos da minha alma.

Ciclicamente
Obrigado
Meus amores

sexta-feira, março 10, 2006

E fui para a rua... ou a ressaca do 8 de Março em
coisa-prosa-politicamente incorrecta, mas também não tenho jeito para striper

Fui para a rua tentando sorver sonhos, revisitar paisagens, talvez emprenhar a inspiração, comungar a carne, reencontrar amigos e outros entes e embalá-los com palavras embriagadas. Fui para a rua imensamente, atordoado de folias e cansaços. Já disse: FUI PARA A RUA! E a rua tinha pedras, e as pedras tinham marcados passos, e os passos não levavam a sítio algum. Mas eu também só queria ir para sítio nenhum, que raio! Sacana de mania de ter de existir sempre um objectivo. Não. Eu cá, quando vou para a rua, vou na acepção mais alargada e estonteante de ir para a rua. Vou à ganância, ao trambolhão! Vou na tentativa colossal de encontrar toda a gente e de a saudar, com alegria e raiva e euforia, mobilizando para isso todos os meus nervos, ossos, veias, neurónios e hormonas também. Pois claro. Assim mesmo! Não vou para a rua por menos. Não existem passeatas de sextas-feiras ou sábados à noite programados que sustenham, abarquem ou entupam , os meus dias à noite de ir para a rua adentro. Se estou na rua, estou à solta. Se estou à solta quero tudo, porra! Não me falem de pouca coisa, hoje quero viver até à exaustão. O quê? O Mundo? Ainda é pouca coisa, uma paisagem apenas, uma enorme massa talvez, mas somente matéria prima para a obra que pretendo realizar com a minha loucura. E eu – pergunta você? Bem, até confesso ser um projecto inacabado. Mas prefiro assim. Há tanta cavalgadura com a ideia de já ser um produto final que não existe espaço mental para tanta besta. Mas sei que você me entende. Afinal andamos todos à procura de algo. Não seja parvo. Não procure. Vá achando. Acredita em Deus? Pois olhe, no meu caso, Deus deixou de acreditar em mim. Se calhar seria melhor dedicar-me só à matéria. Sexo, gastronomia, vinicultura e construção civil. E era feliz. Desculpe, quero lá saber que você tenha perdido cem mil euros com o negócio dos tijolos. Aquilo de que eu falava era da engenharia da minha alma. Alma, pois! Já sei que a tal velhinha diz que a alma é um luxo. Mas eu sempre fui adepto de luxos e luxúrias... Epá ó barman, este vodka veio da Arménia? Como é que se pode raciocinar bem com álcool de terceira? Em contrapartida dá mau hálito arrasador, o que é uma boa maneira de seduzir hipnoticamente. Abro a boca, ela desmaia e depois é só carregá-la para o carro. Não me interessa saber se o seu nome é Convalescente da Próstata Meireles, eu chamo-me Zé da Gente Anónima e tenho uma sede abismal. O quê, fala-me da Realidade? Essa não é aquela doida que frequenta este balcão e que adora ser sodomizada? Eia! Já reparou naquelas pernas? Parecem só ter fim na nuca. Pois é, se o sexo não existisse o que faríamos nós com a suculenta carne? Se eu aceito um copo? Claro. Tudo. É de mau carácter recusar uma oferta dessas. Se me oferece por gosto, faço-lhe a vontade. Se me oferece contrariado, estou a sacaneá-lo. Bate sempre certo. Hã? O governo fez o quê? Você é chato. Eu não sou nada politicamente, ou melhor, sou ingovernável. Olha que raio de treta, para que me serve um governo? Já pensou que se não houvessem tecnocratas as boutiques não vendiam tantas gravatas. E além disso o mundo não tinha gente para decidir grandes merdas. É útil haverem tonhos que tratem dessas coisas. Eu cá sou um adepto da individualidade mais pura. Bem vê: a cada indivíduo o seu copo. E isto não tem nada a ver com filosofia. É básico. Não me venha com essa das responsabilidades. Sou responsável apenas pelo inteligente encaminhamento das minhas bebedeiras. Nunca atropelei ninguém. Desculpe-me, não sei se aquela ali tem tantos assuntos para desenvolver como o senhor, mas iria jurar que aqueles seios me cumprimentaram. Compreenda-me, sou um ser bem educado, tenho de ir saudar aqueles dois assuntos. Barman encha de novo que tenho de ficar com o espírito ensopado. Perdão, mas a menina tem licença de porte de busto? É QUE VISTAS DESTE ÂNGULO AS SUAS MAMAS SÃO ILEGAIS. Não se ria, por acaso não tenho crachá que permita fazer a detenção, mas posso convidá-la para ser interrogada. A minha profissão? Relacionador a todos os níveis. Não conhece? Bem, eu não tenho carteira profissional mas já acumulei vinte anos de intensa actividade; um currículo invejável. Eu, a mentir? Ouça cá, você não terá um problema hormonomental: não será frígida do clitóris ao córtex? Não se chateie, eu estou de abalada. Pois. Pois claro. O senhor pensa então iniciar esse seu novo projecto. Mas já reparou que a única maneira de não errarmos é estarmos muito quietos? Já há tanta trampa feita, que o mais lógico, útil, coerente e certeiramente futurista, será a criação de uma empresa de demolições materiais, destruições de mitos e arrasamentos a granel. Está a ver? Em grandes letras de neon: BUMMM S.A. Afinal onde é que fica a porta deste bueiro? Deveria haver um letreiro enorme em cada saída, com a inscrição: “DAQUI PARA A FRENTE”, não acha? Olha, é a rua de novo! Boa noite, posso dar gargalhadas no seu táxi? O quê? Você está sóbrio não está? Então pronto. Deve saber melhor que eu onde fica a minha casa. Vá indo!!!!

quarta-feira, março 01, 2006

Do que eu gosto? Do silêncio. Indolor, incolor. Perfeito. Eterno. Muito depois dos seres e dos países, dos dias e das estações, dizia Rimbaud. Já estou farto de citar este gajo – cabrão, que adoraria ter bebido copos contigo! No meu caso, tendo apenas em minha posse uma meia garrafa de vinho tinto, de acordo com a crise que alastra, não esperem grandiosa inspiração. Não arrisquei nada. Vendo bem, arrisquei apenas a vida. Curioso: apenas a vida! Sobrou-me mais alguma. Estou aqui. Não como o Abrunhosa no irritante anúncio, mas como um buraco na estrada. Não um apelo ao depósito ou ao crédito, mas uma concavidade contrariante, um incómodo. Confesso que mais para mim próprio que para os outros que me passem por cima. Nada adianta para minimizar esta realidade inversa e solitária de ser buraco. Há o adjacente vazio da ontologia de ser buraco e o silêncio sobrante entre as passagens de outros sobre o buraco que sou. Meu Deus, como adoro a quietude que as suas ausências deixam. E se os altos desígnios celestiais me tiverem atribuído a tarefa de ser uma suprema antítese? O que fazer então? Nada de pânico. Nada de ambições! Ser apenas buraco já é suficientemente penoso e original. Ser buraco exige persistência e também liberdade. Tudo exige liberdade. Liberdade, apesar de tão alardeada e propagandeada, é o que menos há. E como ser então um buraco livre? Sim, que há sempre quem tenha a mania de o tapar, encher, atafulhar, com dogmas, banha da cobra, morais avulso, outros propósitos e sabe-se lá o quê mais. Contrariamente àquelas que deveriam ser as rotinas da Junta Autónoma de Estradas ou entidade equivalente actualizada, há no quotidiano do mundo da estrada da vida, organismos diversos e subreptícios com um magote de calceteiros, empreiteiros e mestres de alcatrão sempre prontos a actuar, que isto dos buracos é mau exemplo para as massas ou argamassas circundantes. Já pensei em mudar de vida. Passar a ser uma protuberância. Sim, que com essas não é costume haver correcção. Um mero sinal na berma da via indicando a existência da bossa e está a diferença de superfície no plano resolvida. Mais valia. Economicamente seria flagrante. Mudaria o nome do blog para “o integrado-reciclado” e tiraria o cartão de um partido político. "O inferno são os outros", afirmava Sartre. Ao que Vergílio Ferreira retorquiu, “e é por isso mesmo que se devem usar óculos escuros”. Nem mais. Cá por mim, nesta vertente em que me encontro, continuo a agradecer, por uma questão de tranquilidade mútua, que passem ao largo. Assim como assim, muito embora pindérico bancariamente, na qualidade de buraco social, já tenho alguma fama, influência e respeitabilidade.

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